Mobilidade e Transporte

Consultor especializado em acessibilidade. Assessor na empresa São Paulo Transportes - SPTRANS para assuntos de mobilidade e acessibilidade para as pessoas com deficiência e pessoas com mobilidade reduzida. Atuou como secretário adjunto da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo, (2012/2015); presidente da Comissão Permanente de Acessibilidade, CPA, (2012/2015); coordenador da Pastoral da Pessoa com Deficiência da Arquidiocese de São Paulo (2006/2013); coordenador do Foro Nacional de Coordenadorias e Secretaria da Pessoa com Deficiência, (2012/2014). Consultor associado ao Estúdio + 1 Arquitetura, Mobilidade e Urbanismo.

A Acessibilidade e a Mobilidade como Condições de Acesso a Direitos

Introdução

Diferentemente de outros temas a acessibilidade nos transportes, e a mobilidade das pessoas com deficiência e pessoas com mobilidade reduzida, foi um tema originalmente inserido na agenda política nacional muito mais por pressão da sociedade civil do que por iniciativa governamental.

Pressão e atuação política do movimento de pessoas com deficiência parida na tensão entre o Modelo Médico e o Modelo Social da Deficiência.

O avanço nas conquistas da mobilidade e da acessibilidade das pessoas com deficiência é manifestação da vitória, que não consideremos completa e nem definitiva, do Modelo Social da Deficiência.

Muita água passou por baixo da ponte, avanços e recuos aconteceram. Mas, o que foi conquistado, passo a passo tem sido consolidado. Considero a mais significativa prova disso, a contribuição de nosso país para a elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com deficiência, da Organização das Nações Unidas e sua posterior ratificação pelo Brasil, um dos primeiros países a fazê-lo.

Posteriormente, mas fundamentado nisso, o lançamento pelo Governo Federal, do Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, Viver Sem Limite. O primeiro do Brasil, um dos poucos, infelizmente, do mundo, plano de governo para o estabelecimento de políticas públicas intersetoriais e transversais de atenção às pessoas com deficiência.

Destaco desse Plano a Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência.

Que a título de conhecimento, apresento suas Diretrizes, plenamente alinhadas com os princípios do Modelo Social da Deficiência:

São diretrizes da Rede:

 I - Respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas;

II - Promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde;

III – Enfrentamento aos estigmas e preconceitos, promovendo o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência;

IV - Garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar;

V - Atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas;

VI - Diversificação das estratégias de cuidado;

 VII- Desenvolvimento de atividades no território, que favoreçam a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania;

 VIII- Ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares;

IX - Organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado;

X - Promoção de estratégias de educação permanente; e

XI - Desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com deficiência física, auditiva, intelectual, visual, ostomia e múltiplas deficiências, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular;

XII- Desenvolvimento de pesquisa clínica e inovação tecnológica em reabilitação, articuladas às ações do Centro Nacional em Tecnologia Assistiva (MCT).

Pessoas com Vulnerabilidade na Mobilidade

O tema do cotidiano, na mobilidade e transportes das pessoas com deficiência, tem sido frequentemente abordado pelos meios de comunicação, geralmente com caráter de denúncia das condições precárias que essas pessoas, e também as pessoas idosas e outros grupos sociais, são submetidos na tentativa do exercício ao direito às cidades.

No sentido de ampliarmos as discussões sobre o assunto, e principalmente para inseri-lo na correnteza e no conjunto da problemática do transporte público e da mobilidade urbana abordaremos o direito ao transporte sob o ponto de vista da plena mobilidade das pessoas que chamaremos de pessoas com vulnerabilidade na mobilidade, com foco nas pessoas com deficiência.

Certamente, como ponto de partida e compreensão, nosso olhar parte dos conceitos de deficiência e de acessibilidade contidos na Lei Brasileira de Inclusão, assim como os conceitos de Funcionalidade contidos na Classificação Internacional de Funcionalidade, CIF.

O corpo com limitações e o ambiente limitante.

Segundo a LBI:

Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.  

Segundo a CIF:

No novo modelo da CIF, haverá a oportunidade de registrar os impedimentos de caráter pessoal e as dificuldades ambientais. Em outras palavras, a partir da CIF é possível reconhecer as dificuldades do indivíduo e aquelas pertinentes ao ambiente em que ele vive, constituindo um sistema de medidas capaz de avaliar os ganhos no processo de reabilitação e as mudanças em direção a uma sociedade inclusiva. 

Vamos então refletir sobre o direito à acessibilidade compreendendo que esta não é, nem poderia ser, apenas acesso a locais e/ou a informações, mas o acesso a direitos sociais.

Pessoas Idosas

Segundo a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - SEADE, nas próximas duas décadas a população de São Paulo vai ter um ritmo mais acelerado de envelhecimento. Com a taxa de natalidade em redução e a expectativa aumentando na capital paulista, o número de idosos vai dobrar na cidade.

O índice de envelhecimento da população, que relaciona o grupo de pessoas com mais de 60 anos de idade em comparação a jovens com menos de 15 anos vai dobrar entre 2010 e 2030. De 6 idosos para cada 10 jovens, em 2010, para 12 idosos a cada 10 jovens em 2030. Em 2050 a proporção será ainda maior: serão 21 idosos para cada 10 jovens. A partir de 2027, São Paulo terá mais idosos do que jovens morando na cidade.

Mobilidade em cadeia

Um conceito importante que deve ser considerado na obtenção de transporte acessível para as pessoas com deficiência e para as pessoas com mobilidade reduzida, PMR, é o da "cadeia de viagem" (Ling Suen et al, 1998)

Uma viagem típica consiste em muitas “ligações”, (por exemplo, casa para o ponto de ônibus, ponto de ônibus para veículo, utilização do veículo, atendimento no veículo, veículo para ponto de ônibus de destino, ponto de ônibus para entrada do local de destino ou para outro modal)

Se uma única dessas ligações na cadeia não estiver acessível para as pessoas com deficiência e para as PMR, a viagem geralmente se torna impossível. Nos projetos de transporte, cada ligação na cadeia de viagem precisa ser considerada, projetada ou melhorada conforme as necessidades e particularidades desse público.

Ao se focar em apenas uma parte da cadeia (por exemplo, nos veículos de transporte público acessíveis), sem considerar outras partes da cadeia (por exemplo, a calçada até para a parada do ônibus) não será assegurado, de fato, a provisão de transporte para todas as pessoas.

Faço questão de reafirmar a importância da mobilidade em cadeia por dois motivos:

  1. É um tema completamente menosprezado pelo gestor de transporte;
  2. É absolutamente indispensável! Sem mobilidade em cadeia, ou mobilidade universal, não fica assegurado de fato, o direito de ir e vir das pessoas com deficiência e pessoas com mobilidade reduzida.

Nesse sentido insiro aqui mais um texto, este extraído do Relatório Mundial Sobre as Pessoas com Deficiência que diz o seguinte:

O Relatório Mundial sobre a Deficiência da Organização Mundial de Saúde (OMS e Banco Mundial, 2011) foca a importância dos serviços de transporte na vida das pessoas com deficiência. De acordo com esse relatório “Os transportes possibilitam o acesso independente ao emprego, ensino, saúde e às atividades sociais e recreativas. Sem transportes acessíveis, é mais provável que as pessoas com deficiência sejam excluídas dos serviços públicos e do convívio social”.

O Relatório fala, ainda, na importância de “assegurar a continuidade ao longo da cadeia de transportes. Para ir de A a B, um passageiro tem que passar por diversas fases, desde descobrir se o seu destino é ou não servido por transportes públicos, até sair do veículo no local certo e depois partir em segurança na direção do seu destino final. Se algum elo da cadeia for quebrado, por exemplo, o passageiro não puder comprar um bilhete autonomamente ou não puder identificar o veículo e/ou o trajeto que pretende usar, a viagem torna-se impossível de realizar sem o apoio de terceiros. Por isso, o operador que se foca apenas na acessibilidade da sua frota, não produzirá um sistema acessível, as pessoas com mobilidade reduzida continuarão a ser excluídas”.

Sem a efetiva implementação do conceito de Mobilidade em Cadeia as pessoas com deficiência e as pessoas com mobilidade reduzida continuarão pessoas com vulnerabilidade na mobilidade!

“Transporte individual motorizado”

Na cidade de São Paulo entre janeiro de 2013 e junho de 2018 foram dispensadas pela rede municipal de saúde 1644 cadeiras de rodas motorizadas criando um pequeno, porém muito interessante impacto na mobilidade de pessoas com deficiência na cidade.

Estudo de caso

Dna. Iracy Alves, moradora do Bairro do Campo Limpo, periferia de São Paulo, teve sempre uma vida ativa, trabalhava, estudava, cuidava das filhas e tinha uma vida social intensa. Após um diagnóstico de Esclerose Lateral Amiotrófica ELA, e com a progressão dessa doença, passou a ter uma vida restrita ao lar, dependendo exclusivamente do Serviço Atende para sair de casa e acessar alguns serviços, dentre os quais do de saúde. Dna Iracy solicitou e recebeu, após trâmites de praxe, uma cadeira de rodas motorizada. Porém, mesmo com esse equipamento fornecido pelo SUS, que é de ótima qualidade, ela não conseguia chegar ao ponto de ônibus próximo à sua casa, pois inexistia qualquer condição de acessibilidade nas calçadas entre sua casa e o ponto de ônibus mais próximo.

Essa situação chegou à São Paulo Transportes, SPTRANS, empresa pública que gerencia o transporte municipal sobre pneus.

Por iniciativa dessa empresa, em parceria com a Subprefeitura do Campo Limpo e com a Companhia de Engenharia de Tráfego, CET, foi realizado projeto de requalificação de todo o trajeto de ligação entre a residência de Dna. Iracy e o ponto de ônibus mais próximo, cerca de 100 metros. O que incluiu construção de pisos e guias rebaixadas, eliminação de degraus, multas e campanhas para o não estacionamento de veículos nas calçadas, sinalização de travessias etc.

Hoje Dna. Iracy consegue chegar com autonomia e segurança ao ponto de ônibus mais próximo, de onde pode acessar várias linhas de ônibus para diferentes locais da cidade.

Essa ação deu origem ao Programa SPTRANS de Microacessibilidade.

Microacessibilidade

O conceito de acessibilidade frequentemente é associado às condições de deslocamento oferecidas às pessoas com deficiência. No entanto, de maneira geral, está relacionado à facilidade de aproximação a um destino desejado com segurança e conforto. O termo microacessibilidade também passa por algumas variações de uso. Segundo o engenheiro, sociólogo e doutor em Ciência Política, Eduardo Alcântara de Vasconcellos, uma das formas de avaliar a microacessibilidade diz também respeito ao tempo de acesso ao destino final desejado. “Quanto menor este tempo, melhor é a microacessibilidade, uma vez que a pessoa atinge mais rapidamente o destino desejado após deixar o veículo que a transporta ou, ao contrário, atinge mais rapidamente o veículo que a transportará para um novo destino, após deixar a origem na qual se encontrava”.

“Entender o direito de ir e vir nas cidades do século XXI requer uma análise que vá além da visão da engenharia de tráfego e da circulação de veículos nas vias. Ela envolve relações complexas entre o cidadão e os sistemas de transportes disponíveis, do uso e a ocupação do solo urbano e principalmente da configuração espacial do meio urbano”.

À guisa de conclusão

Com os recursos utilizados para a construção de um viaduto na cidade de São Paulo, seria possível construir 800 polos de microacessibilidade. Com os recursos utilizados para o recapeamento asfáltico em um ano seria possível construir 2000 polos de microacessibilidade.

Ou seja, a partir do momento que o gestor público, e também a sociedade civil, vislumbrarem a importância do investimento na mobilidade do pedestre com acessibilidade, segurança e conforto, em interconexão com o transporte público, nossas cidades se tornarão mais humanizadas e inclusivas.

Bibliografia

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Nova York. 2012.

GOVERNO FEDERAL. Secretaria de Direitos Humanos. Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Viver Sem Limite. Brasília.  2012

CONGRESSO NACIONAL. Lei Brasileira de Inclusão - Lei Federal 13.146/16. Brasília. 2012.

RELATÓRIO MUNDIAL SOBRE A DEFICIÊNCIA. Organização Mundial de Saúde, Banco Mundial. Nova York. 2012

PLANO MUNICIPAL DE MOBILIDADE URBANA DE SÃO PAULO - Decreto Municipal 56.834/16. São Paulo. 2016.

PROGRAMA DE METAS DA CIDADE DE SÃO PAULO 2017/2020. Prefeitura Municipal de São Paulo. São Paulo. 2016

CÓDIGO DE CONDUTA E INTEGRIDADE DA SÃO PAULO Transportes – SPTRANS. São Paulo. 2018

Plano Diretor Estratégico da Cidade de São Paulo - Lei Municipal 16.050/14. São Paulo. 2014

ESTATUTO DO PEDESTRE - Lei Municipal 16.673/17. Prefeitura de São Paulo. São Paulo. 2017.

ESTATUTO DO IDOSO - Lei Federal 10.741/03. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília. 2003.

FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS – SEADE. Estudo da População Idosa. São Paulo. 2017.

COMISSÃO PERMANENTE DE ACESSIBILIDADE, Resolução 019/2014 Secretaria Municipal das Pessoas com Deficiência. São Paulo. 2014.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT. NBRs 9050, 9077, 13435, 14718, 15097, 15599, 15097, 16537, 313, 14022.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coordenadoria de Saúde da Pessoa com Deficiência. Rede de Cuidados às Pessoas com Deficiência no Âmbito do Sistema Único de Saúde. Portaria GM. MS. 793 de 24/04/12. Ministério da Saúde. Brasília. 2012.

Para saber mais

  • GUIA DE BOAS PRÁTICAS NOS ESPAÇOS PÚBLICOS DA CIDADE DE SÃO PAULO, da São Paulo Urbanismo, SPURBANISMO;
  • RELATÓRIO 8 PRINCÍPIOS DAS CALÇADAS, Construindo Cidades Mais Ativas. WRI Brasil. São Paulo. 2017.
  • VÍDEO: SAÚDE EM TRÂNSITO – Fundação Oswaldo Cruz, (FIOCRUZ) Rio de Janeiro. 2016. https://portal.fiocruz.br/video-saude-em-transito.
  • PESQUISAS EM MICROACESSIBILIDADE. https://www.mobilize.org.br/midias/pesquisas/a-microacessibilidade-na-mobilidade-urbana.pdf. São Paulo. 2013.
  • ESTATUTO DO PEDESTRE. Lei 16.673/2017. Câmara Municipal de São Paulo. São Paulo. 2017.
  • CIDADE AMIGA DO IDOSO. Programa de Metas 2017/20120. Planeja Sampa. Transformar São Paulo em Cidade Amiga do Idoso. Prefeitura Municipal de São Paulo. Secretaria Municipal de Direitos Humanos. Coordenadoria do Idoso. São Paulo. 2017.
  • MODELO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA: Uma Ferramenta Sociológica para a Emancipação Social. Tiago Henrique França. Universidade de Coimbra. Coimbra. 2013.