Caracterização da condição de deficiência e impedimentos

José Carlos do Carmo (Kal), médico graduado pela Faculdade de Medicina da USP, mestre pela Faculdade de Saúde Pública da USP, especialista em Medicina Preventiva e Medicina do Trabalho, auditor fiscal do trabalho, coordenador do Projeto de Inclusão da Pessoa com Deficiência da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo, autor e coautor de livros e artigos nas áreas de saúde do trabalhador e da inclusão no trabalho da pessoa com deficiência.

A principal referência legal em nosso país sobre as questões que dizem respeito às pessoas com deficiência, inclusive sobre os critérios para sua caracterização, é a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, e promulgados pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Decreto Nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.  A Convenção, em seu artigo primeiro, estabelece que “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.”

Esse é um conceito revolucionário na medida em que se contrapõe à ideia de que a deficiência é de responsabilidade, quando não culpa, das pessoas que apresentam esses impedimentos, e explicita que ela só existe quando a sociedade é incapaz de identificar e eliminar as barreiras que as impedem de usufruir das mesmas condições que as demais pessoas.  Importante lembrar que as barreiras são de diferentes dimensões, não se limitando às físicas ou arquitetônicas, destacando-se as barreiras atitudinais, responsáveis pelo preconceito e discriminação.

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).– LBI (Lei 13.146 de 6 de julho de 2015), em consonância com o conceito da Convenção, diz que “a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; III - a limitação no desempenho de atividades; e IV - a restrição de participação”.   

A correta interpretação do que está declarado pela LBI é a de que sempre que for necessária a realização da avaliação da deficiência, ela deverá ser biopsicossocial, indo além do modelo biomédico, e realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar, ou seja, por mais de um profissional de ramos do conhecimento diferentes.  Esta observação se faz necessária porque há aqueles que, ou por discordarem do que está na lei ou por a interpretarem equivocadamente, defendem que possa haver situações em que essas características – o caráter biopsicossocial da avaliação e a sua realização por equipe multiprofissional e interdisciplinar - não sejam necessárias.

Ao tratar da equipe multiprofissional, a lei não especifica que o médico, ou qualquer outro profissional, deva fazer parte dela obrigatoriamente.  Assim, é possível concluir que quaisquer profissionais capacitados, com formações e conhecimentos técnicos diferentes, estão aptos a fazer a avaliação da deficiência.

A Organização Mundial de Saúde – OMS, no Relatório Internacional sobre Deficiência (2011), recomenda que os países membros adotem a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – SIF.  Destaque-se que ela não uma ferramenta de mensuração, nem instrumento de pesquisa, mas uma classificação que permite que se obtenha um padrão que pode ser usado com diferentes finalidades, inclusive para a orientação das políticas públicas.

A LBI estabeleceu que compete ao Poder Executivo federal criar instrumentos para a avaliação da deficiência (Art. 2º, §2º).  Este instrumento deverá definir critérios objetivos para que a avaliação possa ser feita padronizadamente, facilitando a comparação de dados e a implantação das políticas públicas.

Enquanto estes instrumentos não forem definidos, a auditoria fiscal do trabalho, na avaliação dos laudos caracterizadores da condição de pessoa com deficiência, além das referências principais, constituídas pela Convenção Internacional e pela LBI, que destacam a necessidade da avaliação da funcionalidade e das barreiras existentes, tem como referências normativas principais:

Decreto Nº 5.296/2004

Regulamenta as Leis nos10.048/2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.

Anexo III do Regulamento da Previdência Social - RPS

O Decreto No 3.048, de 6 de maio de 1999, modificado pelo Decreto No 4.032, de 26 de novembro de 2001, aprovou o Regulamento da Previdência Social, que, dentre outros aspectos abordados, define os critérios para concessão do auxílio-acidente, concedido quando, após a consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, houver sequela definitiva que implique redução da capacidade para o trabalho. 

Essa redução é detalhada no Anexo III do RPS, que é usado pelo auditoria fiscal de forma complementar ao Decreto Nº 5.296/2004, nos aspectos em que este não for contrariado.

Instrução Normativa da Secretaria de Inspeção do Trabalho – SIT Nº 98/2012

A IN 98 dispõe sobre procedimentos de fiscalização do cumprimento, por parte dos empregadores, das normas destinadas à inclusão no trabalho das pessoas com deficiência e beneficiários da Previdência Social reabilitados.  Estabelece os procedimentos da fiscalização da inclusão de pessoas com deficiência e beneficiários da Previdência Social reabilitados no mercado de trabalho, com vistas a assegurar o exercício pleno e equânime do direito ao trabalho e a promoção do respeito à dignidade da pessoa humana, conforme estabelece a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.

Em seu Art. 8º, define que para fins de comprovação do enquadramento do empregado como pessoa com deficiência é necessária a apresentação de laudo elaborado por profissional de saúde de nível superior, preferencialmente habilitado na área de deficiência relacionada ou em saúde do trabalho, que deve contemplar as seguintes informações e requisitos mínimos:

I - identificação do trabalhador;

II - referência expressa quanto ao enquadramento nos critérios estabelecidos na legislação pertinente;

III - identificação do tipo de deficiência;

IV - descrição detalhada das alterações físicas, sensoriais, intelectuais e mentais e as interferências funcionais delas decorrentes;

V - data, identificação, nº de inscrição no conselho regional de fiscalização da profissão correspondente e assinatura do profissional de saúde; e

VI - concordância do trabalhador para divulgação do laudo à Auditoria-Fiscal do Trabalho e ciência de seu enquadramento na reserva legal.

NATUREZA DOS IMPEDIMENTOS: FÍSICA, SENSORIAL, INTELECTUAL e MENTAL.

A Convenção e a LBI definem, quanto à natureza e duração, que pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.  Como curiosidade e para facilitar o entendimento, na tradução da Convenção adotada em Portugal, no lugar de “impedimentos de longo prazo” é usada a expressão “incapacidades duradouras”.

No Decreto Nº 5.296/2004, as pessoas com deficiência são definidas como aquelas que se enquadram nas categorias: deficiência física, deficiência auditiva, deficiência visual, deficiência mental e deficiência múltipla.

De acordo com a Portaria Interministerial AGU/MPS/MF/SEDH/MP Nº 1 DE 27/01/2014, em seu artigo 3º, considera-se impedimento de longo prazo, para os efeitos do Decreto nº 3.048, de 1999, aquele que produza efeitos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, pelo prazo mínimo de 02 (dois) anos, contados de forma ininterrupta.

DEFICIÊNCIA FÍSICA

Alteração, completa ou parcial, de um ou mais segmentos do corpo humano, que acarrete o comprometimento da função física.

Paralisias

O sufixo “plegia” refere-se à paralisia completa, com perda total dos movimentos.  Enquanto que “paresia” refere-se à limitação dos movimentos, com padrão considerado abaixo do normal.

Formas de apresentação:

  • monoplegia e monoparesia: paralisia, completa ou incompleta, de um só membro;
  • triplegia e triparesia: paralisia, completa ou incompleta, de três membros;
  • tetraplegia e tetraparesia: paralisia, completa ou incompleta, de quatro membros;
  • paraplegia e paraparesia: paralisia, completa ou incompleta, de ambos os membros inferiores;
  • hemiplegia e hemiparesia: paralisia, completa ou incompleta, de uma das metades sagitais (esquerda ou direita) do corpo.

Alterações articulares

Utiliza-se como referência para avaliação do grau de comprometimento do movimento articular o Quadro 6 do Anexo III do RPS.

Os graus de redução de movimentos articulares referidos neste quadro são avaliados de acordo com os seguintes critérios:

- grau máximo: redução acima de dois terços da amplitude normal do movimento da articulação;

- grau médio: redução de mais de um terço e até dois terços da amplitude normal do movimento da articulação;

- grau mínimo: redução de até um terço da amplitude normal do movimento da articulação.

Ostomia ou Estomia

O termo deriva da palavra grega ″stoma", que significa ″boca″.

Refere-se a estrutura construída por intervenção cirúrgica, permitindo a comunicação do meio interno com o externo, para eliminação de fezes, urina ou para permitir a passagem do ar.  A ostomia pode ser temporária ou permanente, sendo que para a caracterização da condição de pessoa com deficiência só são consideradas as permanentes.

São exemplos: a colostomia (fezes, intestino grosso), ileostomia (fezes, intestino delgado), urostomia (urina), traqueostomia (ar).

Amputação ou ausência de membro

Corresponde à perda de segmento ósseo de membro, sendo que perda parcial de parte óssea de um segmento equivale à perda do segmento.

Critérios considerados para caracterização da limitação funcional, conforme Quadro 5 do Anexo III do RPI.

Para os membros superiores:

- perda de segmento ao nível ou acima do carpo;

- perda de segmento do primeiro quirodáctilo, desde que atingida a falange proximal;

- perda de segmento do segundo quirodáctilo, desde que atingida a falange proximal;

- perda de segmentos de dois quirodáctilos, desde que atingida a falange proximal em pelo menos um deles;

- perda de segmento de três ou mais falanges, de três ou mais quirodáctilos.

Para os membros inferiores:

- perda de segmento ao nível ou acima do tarso;

- perda de segmento do primeiro pododáctilo, desde que atingida a falange proximal;

- perda de segmento de dois pododáctilos, desde que atingida a falange proximal em ambos;

- perda de segmento de três ou mais falanges, de três ou mais pododáctilos.

Paralisia cerebral

Qualquer comprometimento de funções neurológicas, decorrente de lesões cerebrais ocorridas durante a gestação, no momento do parto ou após o nascimento, ainda no processo de amadurecimento do cérebro da criança.

O quadro clínico é bastante variado, dependendo da área do cérebro atingida.  O laudo deve incluir a descrição das limitações funcionais e outros tipos de deficiência, quando houver.

Nanismo

Estado de uma pessoa caracterizado por uma estatura menor do que a média da população da mesma idade e sexo, decorrente de uma deficiência do crescimento provocada por insuficiência endócrina ou má alimentação.

Há nanismos com desproporção entre tronco e membros (acondroplasia) e outros, como o que ocorre por desnutrição, em que a proporção dos segmentos corporais é preservada. No caso de nanismo proporcional, a referência é apenas a baixa estatura.

Estatura máxima aceita para a Lei de Cotas:

Mulher: 140 cm – Homem:145 cm.

Outras alterações

Encurtamentos de membros inferiores que alteram a marcha comunitária: o Quadro 7 do Anexo III do RPI menciona que, para caracterizar o comprometimento da função, o encurtamento deve ser de mais de 4 cm.  Existem, no entanto, situações em que este valor é menor, mas que, devido a associação com outras lesões (da bacia, por exemplo), a deficiência física é possível de ser caracterizada.

Aparelho da fonação: quando houver perturbação da palavra em grau médio ou máximo, desde que comprovada por métodos clínicos objetivos.  As deficiências da fala também podem, em alguns casos, ser classificadas como transtornos mentais.  Por exemplo: Gagueira (tartamudez) - CID 10 - F98.5.

Deformidades estéticas

Apesar do Decreto 5.296 descartar as deformidades estéticas para a caracterização de deficiência, de acordo com a análise biopsicossocial, elas podem ser consideradas se forem responsáveis por tratamento discriminatório e preconceituoso.  O Quadro 4 do Anexo III do RPG coloca que “só é considerada como prejuízo estético a lesão que determina apreciável modificação estética do segmento corpóreo atingido, acarretando aspecto desagradável, tendo-se em conta sexo, idade e profissão do acidentado.”

DEFICIÊNCIA AUDITIVA

Caracterizada como perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.  A avaliação deve ser feita por meio de audiometria tonal, por fonoaudiólogo ou médico.  Complementarmente podem ser feitos outros exames para melhor caracterizar o comprometimento da capacidade de comunicação social.

Conforme parecer do Conselho Federal de Fonoaudiologia (Parecer CFFa – CS nº 31, de 1º de março de 2008) a perda pode ser calculada pela média aritmética das medidas nas frequências consideradas.

Existem estados com leis que determinam que a perda auditiva unilateral pode caracterizar a deficiência auditiva.  A auditoria fiscal do trabalho, no entanto, segue somente critérios legais de âmbito federal, não se baseando em legislações estaduais ou municipais.

DEFICIÊNCIA VISUAL

São considerados os casos de cegueira (amaurose), quando a acuidade visual for igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica, e os de baixa visão, quando a acuidade visual estiver entre 0,3 (20/60) e 0,05 (20/400) no melhor olho com a melhor correção óptica.

Os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o também caracterizam a deficiência.

Por determinação superior, contraria à definição legal e parecer do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE, a auditoria fiscal aceita a visão monocular como deficiência visual.

DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

Caracterizada pelo funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho.

Segundo critérios adotados internacionalmente, o início da deficiência intelectual deve ocorrer antes dos 18 anos, por se tratar de um transtorno do desenvolvimento.  No entanto, para fins da Lei de Cotas também são considerados os casos que se manifestam em idade mais avançada, em decorrência de doenças ou causas externas.

DEFICIÊNCIA MENTAL (PSICOSSOCIAL)

A pessoa com transtorno mental apresenta perturbações do raciocínio, do comportamento, da compreensão da realidade e da adaptação às condições da vida.

Os transtornos mentais podem ser categorizados como transtornos neuróticos e transtornos psicóticos.

Os transtornos neuróticos são considerados menos graves, não levando a uma desconexão com a realidade, nem a um afastamento importante da vida social.

Os transtornos psicóticos podem incluir alucinações, delírios e alterações importantes do afeto e das relações sociais, com confusão entre fantasias e realidade.

Para a finalidade da Lei de Cotas, o transtorno mental deve ser de longa duração ou incurável, dentro dos conhecimentos atuais, mesmo que haja controle dos sintomas.

AUTISMO

O Transtorno do Espectro Autista – TEA engloba diferentes condições marcadas por perturbações do desenvolvimento neurológico, todas relacionadas com dificuldade no relacionamento social.  Segundo a Lei 12764/2012, a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.

CONCLUSÃO

O objetivo da Lei de Cotas é o de resgatar um direito fundamental de cidadania – o direito ao trabalho – para as pessoas com deficiência, que, historicamente, tem sofrido de preconceito e discriminação.

Ela não pode ser entendida como panaceia para todos os preconceitos e injustiças do mundo do trabalho, devendo ser destinada apenas às pessoas com deficiência.  Daí a importância da correta avaliação desta condição, com a utilização de critérios objetivos e que tenham base legal.

Vale lembrar que a cota se destina também aos reabilitados pela previdência social.

O laudo caracterizador da deficiência não deve ser confundido com o atestado do exame médico pré admissional, que deve ser realizado para os trabalhadores com deficiência, da mesma forma que para qualquer outro trabalhador.  Importante destacar que a LBI determina que a pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

É vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.